segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Menos as neuróticas

Nelson Rodrigues já era Nelson Rodrigues quando foi convidado pelo dono do jornal Última Hora para escrever sobre as tragédias e mazelas da sociedade suburbana carioca na coluna "A vida como ela é..." entre os anos 1950 e 1970. Dentre as crônicas publicadas pelo jornal, Elas gostam de apanhar destaca 26 delas dedicadas ao universo feminino, ainda que as mulheres nem sempre sejam as protagonistas - mas são sempre elas que desencadeiam ou resolvem os acontecimentos.

Escrever como Nelson Rodrigues não é difícil: uma pitada de suspense, de drama, de humor, de polêmica, a linguagem do cotidiano, uma carga de paixão, o apelo ao adultério, ao incesto, ao ciúme... Junta-se tudo isso e cria-se uma história à moda do dramaturgo (que faria 97 anos ontem se não tivesse morrido em 1980 interrompendo sua brilhante carreira). Mas o que faz de Nelson único são as criativas conclusões das crônicas, na maioria das vezes surpeendentes.

Os personagens femininos são predominantes na obra do escritor. Em Elas gostam de apanhar, elas são mães, esposas, filhas, irmãs e, invariavelmente, cumprem seu respectivo papel. A mulher, na época de Rodrigues - época em que casamento era para sempre, os filhos viviam na barra da saia das mães, as viúvas vestiam luto eterno - e na cabeça do próprio escritor, servia de mau exemplo aos leitores por suas ações, por seus pensamentos muito modernos para o tempo ao qual pertenciam. As 26 crônicas selecionadas demonstram isso: mulheres que não têm medo de enfrentar o preconceito ou o atraso da sociedade, lutam contra seus medos e se permitem certas vontades. Se não há amor no casamento, por que não buscá-lo fora dele? Se o professor bonitão é casado, por que não matar sua esposa "acidentalmente"? Se seu marido foi um santo de homem em vida, é melhor investigar direito...

Ao mesmo tempo que exercita sua veia liberal, algumas vezes Nelson Rodrigues não escapa do conservadorismo dos valores morais de sua época. Mães que se aproveitam de um certo complexo de Édipo, mães que trocam a vida conjugal para dedicar-se à criação dos filhos, filhas que tomam conta das mães mais assanhadas são comuns em suas histórias. Nelson Rodrigues reinventa as notícias de jornal, recriando um novo tipo de ficção - a ficção jornalística que tantos autores depois insistiram em imitar. Nenhum chegou aos pés do toque dramático e poético que deu aos fatos policiais contados sob o olhar objetivo do jornalismo.

No entanto, os tempos mudaram, a sociedade se transformou. Hoje talvez Nelson Rodrigues não escandalize tanto quanto polemizou e quebrou barreiras em sua época. O escritor e jornalista não via as mulheres como simples passarinhos numa gaiola, passarinhos sem voz - dentro e fora de casa. Não admitia que fossem tratadas como ignorantes, como livres do pecado, livres do mal. Ninguém está livre disso. Não importa que sejam adúlteras, ciumentas ou possessivas: importava-lhe que as mulheres tivessem atitudes e, mais que tudo, sentimentos. Que não bancassem a cega ou a moça desprotegida no meio do tiroteio. E, em Elas gostam de apanhar, Nelson Rodrigues cumpre a promessa: as mulheres assumem suas vontades. É batata! Elas gostam de apanhar - menos as neuróticas, claro.

2 comentários:

  1. ok, Midori...

    falando sobre o Nelson, ele mesmo se confessava um reacionário. Ele, por exemplo, apoiou o golpe militar de 1964.

    Sobre "A Vida Como Ela É...", são crônicas policiais na verdade. Mas de um tempo em que adultério ainda era crime. Logicamente, tornava-se assunto para ele. Também há crônicas sobre assassinatos e suicídios. Porém, há 50 anos, todos os grandes crimes tinham apenas motivações passionais (a própria morte do irmão de Nelson foi assim). Um Nelson de hoje falaria apenas de milícias, tiroteios e acidentes de transito.


    Já comentando o papel central da mulher: o papel delas na obra do Nelson é fundamental. Mas acho que nao concordo em nada contigo. Quase sempre as mulheres são Eva, tentando Adão a comer a maçã. Acho que voce tem uma visão mais grandiosa (e até defendeu bem).

    Beijos.

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  2. Eva tentando Adão a comer a maçã é a visão conservadora da época. Apesar de adultério ser crime na época (continua sendo mas a coisa meio que vulgarizou), as mulheres de Nelson esquecem a ética e os bons costumes e dão prioridade à felicidade pessoal, ao que elas pensam, às suas vontades. Elas são infelizes no casamento? Ótimo, correm atrás de outro amor, mas sem largar o marido. Ou seja, elas revolucionam no modo de pensar, mas, ao mesmo tempo, fincam os pés com medo do futuro, com medo do que "as pessoas vão dizer". Não são revolucionárias no melhor sentido da palavra, mas são libertárias - procuram sua liberdade no que lhes resta da sociedade machista da época.

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