sexta-feira, 28 de agosto de 2009

A experiência que saiu do controle


Autocracia é a forma de governo em que o líder possui poder absoluto e ilimitado. O líder autocrata planeja permanecer para sempre no poder e promove um regime ditatorial em que a lavagem cerebral de seu povo é constante, a fim de que possam difundir sua ideologia e sua causa. Ainda que não haja uma ideologia ou uma causa bem determinadas.

Em A Onda (Die Welle, Alemanha, 2008), um professor de um colégio alemão resolve aplicar ao seu curso de autocracia - que dura apenas uma semana - a seguinte experiência: criar um microrregime autocrático em sala de aula para, pedagogicamente, fazer os alunos perceberem como os alemães aderiram ao nazismo.

É claro que há certas coisas inseridas aí. Primeiro, a própria culpa que os alemães carregam até hoje pela barbaridade que foram o Holocausto e o nazismo. No primeiro dia de aula, o professor em questão, Rainer Wenger (Jürgen Vogel) - descolado e popular entre os alunos, que curte punk rock e aparece na cena inicial vestido com a camisa dos Ramones -, pergunta aos estudantes se eles acham possível a Alemanha de hoje sucumbir a uma ditadura ou a um regime como o nazismo. A maioria reage, com a justificativa de que os alemães atuais já estão mais do que bem-instruídos sobre o assunto, ou seja, não haveria a menor possibilidade de isso acontecer.

Daí passemos ao segundo ponto: dois dos motivos para os alemães terem apoiado o nazismo nos anos 1930 foram a crise econômica em que a Alemanha se encontrava e a falta de motivação da população causada pela derrota na I Guerra e pela própria situação dramática em que vivia. Com uma situação dessa qualquer joão-ninguém, qualquer um que se destacasse com algumas ideias na cabeça e uma oratória brilhante seria adorado e visto como o salvador da pátria, literalmente. Eis que o tal cara era Hitler, um joão-mais-do-que-ninguém, que chegou prometendo mundos e fundos para tirar a Alemanha do fiasco. Mas, para isso, ele precisaria do apoio de cada um que desejasse o mesmo. E deu no que deu.

Não estou dizendo que o horror ocorrido durante a II Guerra tenha tido a permissão da população alemã. Os cidadãos apostavam num líder, num salvador, ou seja, naquele que os tiraria do pesadelo em que viviam, e não que matasse milhões e milhões de pessoas inocentes que nada tinham a ver com isso. Acontece somente que a vontade de sair do pesadelo custou a eles uma bela lavagem cerebral, que consistia em uni-los num grupo, eliminar os que não aceitassem a proposta e defender sua causa até a morte. Tudo para o bem da nação.

No microrregime experimentado por Wenger na sua turma de colegiais, podemos perceber todas estas características juntas. O que começa como uma experiência termina com obsessão, fanatismo e atos de vandalismo. Tudo isso acontece em apenas uma semana. Alunos antes preguiçosos, desmotivados, infelizes ou com conflitos domésticos passam a ter algo a se dedicar, viver por aquilo, uma razão pela qual lutar e defender, anulando o individualismo. Wenger, o führer, estabelece uma pequena ditadura interna, que deveria permanecer ali, entre as quatro paredes da sala de aula: os jovens só deveriam se dirigir a ele como Herr Wenger (e não apenas Rainer), só poderiam falar se autorizados e em pé, deveriam aprender a atuar em comunidade, uns ajudando os outros - separou os grupinhos e colocou alunos fracos e fortes lado a lado. Daí para a frente os alunos entenderam o "jogo" e entraram na dança: criaram um uniforme, um nome para o movimento - A Onda -, adesivos, logomarca, home page e até uma saudação. Angariaram simpatizantes, produziram festas e rechaçaram todos aqueles que se negassem a seguir os preceitos do regime. Ao fim de uma semana, os integrantes do movimento lotam um auditório inteiro, possuem uma ligação afetiva de pertencimento, como uma família, e a coisa sai muito do controle.

A Onda, o filme, é uma refilmagem de outro realizado para a TV - The Wave (1981) - e uma adaptação do livro de Todd Strasser, baseado num acontecimento que ocorreu num colégio de Ensino Médio norte-americano em 1967. O professor de história William Ron Jones simulou um regime totalitário fascista, fundamentado no lema "Strength through discipline, strength through community, strength through action, strength through pride" (Força pela disciplina, força pela comunidade, força pela ação, força pelo orgulho). Os alunos levaram tudo aquilo a sério e um deles perdeu uma das mãos ao lidar com explosivos. Jones foi demitido, enquanto Wenger, o professor da ficção, teve muito mais problemas.

Alguns espectadores podem achar que as transformações dos alunos ocorreram rápido demais. Afinal, o curso dura apenas uma semana! A linearidade do roteiro divide a narrativa em dias para, assim, acompanharmos dia a dia a mudança dos estudantes quanto a atitudes e à personalidade. No entanto, essa rapidez pode ser compreendida pela velocidade com que a lavagem cerebral atinge as pessoas. Marco (Max Riemelt), um rapaz calmo, jogador de polo aquático e apaixonado pela namorada, torna-se agressivo e violento. A namorada, Karo (Jennifer Ulrich), por outro lado, é mostrada, no início do filme, como uma menina cheia de vontades, mandona e louca para se livrar dos pais extremamente liberais. Ela é uma das que não seguem o movimento criado por Wenger e o alerta inutilmente para a situação que se está formando.

O final - calma, não vou contar - é espetacularmente brilhante para um filme, mas absolutamente terrível para ter acontecido na vida real. O diretor, Dennis Gansel, consegue transferir a mensagem da alienação, do poder que as palavras exercem sobre uma pessoa - inclusive se esta pessoa passa por problemas e for jovem. O poder de limar com as próprias opiniões para ser aceito, para pertencer a algum lugar, para ser querido por outrem. O poder do desenvolvimento pela ordem, pela igualdade e pela proteção por estar em uma comunidade. O poder de entrar na onda.

***
1- William Ron Jones, o professor que originalmente adotou a experiência, foi coautor do filme The Wave, feito para a TV, e participou da premiere mundial de Die Welle no Festival de Sundance do ano passado.
2- Como não poderia ser mais a ver, um blog foi criado para divulgar o filme, onde podemos encontrar dados sobre a experiência e o trailer: http://seguindoaonda.blogspot.com/
3- Aqui está o artigo que Ron Jones escreveu sobre a experiência, "The third wave": http://web.archive.org/web/20080211081934/http://www.vaniercollege.qc.ca/Auxiliary/Psychology/Frank/Thirdwave.html
4- No site a seguir, há depoimentos de ex-alunos e de Ron Jones, em que ele confessa ter cometido um erro terrível e que a curiosidade falou mais alto: http://www.ronjoneswriter.com/wave.html

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