sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Libertinagem

Pesquisando sobre Philip Roth e seu personagem Zuckerman, de que tanto Rubem Fonseca fala em seu Diário de um fescenino, acabei encontrando uma boa amostra daquele autor que pode traçar um diálogo com o livro. Chama-se O complexo de Portnoy, cujo narrador-protagonista é um advogado nova-iorquino que relata no divã do psicanalista, alternando passado e presente, a infância edipiana e opressiva ao lado da mãe judia, a adolescência dedicada à prática da masturbação, entre outras "perturbações".

Voltemos ao fescenino. Digo que o livro de Philip Roth pode traçar um diálogo com este por ambos terem: narradores-protagonistas; narradores confessionais (no caso de Roth, para o psicanalista; no caso de Fonseca, o diário); muita putaria e perversão; dois autores muito criticados e cultuados justamente pelo item anterior. Philip Roth é também muito conhecido por seu, digamos, alter ego: o protagonista de vários de seus livros Nathan Zuckerman. Alter ego porque muitos leitores acreditam que Zuckerman é Roth através de atos e pensamentos. Pela semelhança de personalidade, foram cunhadas as expressões "síndrome de Zuckerman" ou "zuckermanianos" dirigidas àqueles que acreditam nesta teoria.

Assim como Zuckerman e Roth, o mesmo fenômeno acontece aqui entre Rubem e Rufus, o escritor protagonista de Diário de um fescenino. Além da semelhança entre os nomes, autor e personagem compartilham a literatura de provocação e não poderiam, por menos, deixar de discutir a relação entre autor e leitor. Rufus é autor de cinco livros, mas apenas o primeiro foi best-seller. Tenta escrever o sexto por pressão de seu editor e, para não ficar louco, inventa de escrever um diário. Nos primeiros dias, tenta descrever esta função, mas, ao lado do relato de seu cotidiano e suas perspectivas, com o passar do tempo, Rufus vai introduzindo suas reflexões mais intensas sobre a vida, seus desejos, sua busca por autocompreensão e, claro, muitas digressões (que são o ponto alto do livro).

A ideia de escrever um diário ou cartas para contar o cotidiano ou o que se pensa sobre a vida não é incomum. O que torna Diário de um fescenino uma obra-prima é a ironia do texto, as referências a escritores estrangeiros, as citações latinas e, claro, o próprio enredo típico de Rubem Fonseca, recheado de cenas eróticas e palavrões. Rufus engana, trai e come todo mundo, e, quando você acha que o livro já está bom sem acontecer coisa alguma, Fonseca surpreende com uma reviravolta, de tal maneira que fica até difícil explicar. Uma boa descrição da sensação que é ler Rubem Fonseca é resumida na quarta capa de seu outro livro A confraria dos espadas, minha próxima leitura:

"A melhor coisa na obra de Rubem Fonseca é não saber aonde ela vai nos levar. Toda vez que começo um livro dele é como se atendesse um telefonema no meio da noite: 'Oi, sou eu. Você não vai acreditar no que está acontecendo.' Bem, talvez não no começo, mas logo já estou acreditando em tudo. Sua escrita faz milagre, é misteriosa. Cada livro dele não é só uma viagem que vale a pena: é uma viagem de algum modo necessária." (Thomas Pynchon)

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Viagem de kombi (1)

Foi mais engraçado assistindo do que eu contando aqui.
Peguei a kombi pra Ribeira. Entrou uma mulher logo depois que, visivelmente, não batia bem da cabeça.

"Você vai pra Ribeira, né?", disse ela, perguntando pro motorista.
"Vamos sim, senhora."
"Você sabe onde fica a rua Lourenço da Veiga?"
"É na Ribeira? Então, entra aí que nós acha."
"Você vai me dizer quando saltar, né?"
"A senhora não tem nenhuma referência?"
"Você acha que eu tenho GPS? Liga aí o teu GPS, o GPS da kombi pra ver se acha."
"A gente não tem GPS."
"Olha lá, hein? Eu sou velha, mas não sou burra" e, virando-se pro trocador, "Esse cara aí é metido a esperto, mas não me engana. Tá ouvindo, né?"
"Tô sim, senhora", disse o trocador.
"Não me chama de senhora não que eu não sou velha", pro trocador, "aliás, pra você eu posso até ser tia, mas", pro motorista, "pra você, eu sou irmã, devo ter quase a mesma idade. Vem me chamar de tia que eu te enfio o cacete."

Coitado, com certeza o motorista era mais novo que ela.

"Vou matar aquele safado!"
"De quem que a senhora tá falando, não é de mim não, né?", perguntou o motorista.
"Aquele safado que me trocou por aquela vagabunda. Ah, mas eu mato. Só tenho que descobrir onde o safado tá morando agora. É nessa rua, Lourenço da Veiga, na Ribeira, só sei que fica perto da praia."
"Tem um monte de praia a Ribeira."
"Mas eu vou achar o safado. Vocês estão duvidando? Vou chegar lá , tenho que comprar o porteiro, vou perguntar 'O safado tá em casa? Ele tá acompanhado?', se ele disser que sim eu lhe dou 10 reais e fico lá esperando o safado descer com a piranha."
"Mas por que vai matar o cara? Vocês terminaram mal?", perguntou o garoto - antes eu achava que era uma mulher - que sentava ao lado dela.
"Só vou terminar matando. Pensa que vou dar mole assim pra urubu? Tá amarrado. Vou matar bonito."

Um casal que sentava no banco atrás do dela saltou na Praça do Grego. A mulher não perdeu a chance:

"Olha o chifre!", disse, enquanto o cara saía. Quando a kombi passou por eles, o casal se beijava. A velha trepou no trocador e enfiou a cabeça pela janela: "Pega mesmo, beija gostoso!!!!" E voltando pra dentro: "Corajosa ela, de beijar um corno."

Todo mundo na kombi só rindo, eu inclusive. O garoto e ela trocavam sussurros escutáveis:

"Se quiser deixa esse cara pra lá e vai lá pro quiosque onde eu trabalho. Lá tem muito macho."
"Muito macho mermo? Olha que eu vou, hein? Nesses quiosques eu vejo só mulher..."
"Onde eu trabalho só tem homem."

O garoto saltou logo depois, na Praia da Bica. A mulher não deixou pra depois:

"Esse aí é gay. Tá vendo os trejeitos? Não tenho dúvida. Mas não pode ter preconceito não, menino, a vida tá aí pra gente viver como quiser, o importante é ser feliz, não importa como. Eu já peguei muito homem na minha vida, e vou te dizer, homem é muito bom. Eu, na minha época dos 20 anos, vivia pegando homem, não passava um que não me dirigisse o olhar."

Acredito. Passamos pelo Sunshine, um motel que fica no final da Praia da Bica.

"Esse Sunshine aí... Todo dia eu tava aí namorando, não me escapava um. Tem uma garagem subterrânea, o carro descia assim... Ih, eles fizeram reforma, não era assim não."
"Eles fecharam essa entrada, por cima. Agora, só dá pra entrar lá por baixo, pela praia", esse foi o trocador.
"Você já foi, motorista, aí no Sunshine?"
"Eu não, nunca fui."
"Ahhh, tá com vergonha de falar, né, mas foi sim, bonitão desse jeito..."

Passou um tempo calada.

"Ai, que calor, meu Deus do Céu, me abana, vai, menino, vou sentar na janela que é mais fresco, não posso chegar lá pra pegar meu macho de volta toda suada, toda feia, né? Tenho que ir assim, bonitona de nascença, cheirosinha... Mas, como eu ia dizendo, na época dos meus 20 anos peguei muito homem, principalmente fuzileiro... Esse aí é fuzileiro... Gosto muito de fuzileiro naval... Fuzileiro e da Aeronáutica... Ia praquela praia ali do Bananal, nossa, tem vinte anos que não vou à praia, e aqui da Ilha então, essas praias eram tão limpas, dava até pra namorar lá dentro da água, agora tudo virou esgoto. O Bananal já passou?"
"Já, sim, senhora."

Mentira. O Bananal é lá do outro lado, a kombi nem passa por lá pra ir pra Ribeira.

"Ia muito praquela praia do Bananal, sabe onde é? Ali do lado, onde tem aquela vaca. Vaca não, é onça. A onça em cima da pedra, a praia onde tem a onça em cima da pedra. Ali tem aquele batalhão do Exército [não é batalhão, é reserva da Marinha...], cansei de pegar aqueles oficiais musculosos ali... Ali é Exército ou Marinha?"
"Ali é Marinha", disse o motorista.
"Então, cansei de pegar fuzileiro ali, muito bom, muito bom. Aquele safado vai me pagar..."

Saltou o cara que estava do meu lado, com fone no ouvido, alheio às divagações da senhora, no batalhão da PM.

"Olha só, maior cara de bandido. Ninguém diz, né, mas esse aí é bandido. Eu conheço quando vejo um... Eu já te paguei?"
"Pagou não."
"Paguei sim, te dei 2 reais, não vem com essa conversa não... Só tenho 5 reais pra voltar pra casa, se eu te der o que tenho, como eu volto? A pé? Você não pode esquecer, hein? E eu, então, sou inesquecível, né verdade, motorista?"

O motorista nem retrucou. Melhor não contrariar. E ela não tinha que ter mais dinheiro pra subornar o porteiro do prédio do tal fuzileiro?
Estávamos perto do mangue.

"Onde tá a praia?"
"A praia tá aqui atrás, a gente tem que ver que rua é essa de que a senhora tá falando", o trocador se virou pra mim - só restávamos eu e ela de passageiras - e perguntou se eu sabia onde ficava essa rua, eu respondi que não. "Deve ser uma dessas ruas aqui perto da ACM, tem que ficar olhando as placas..."

Depois dessa começou o temporal e a mulher ficou reclamando que ia chegar lá pra matar o cara fedendo a cachorro molhado e, nisso, eu saltei na ACM. Com certeza deve ter falado uma gracinha a meu respeito. Ninguém merece...

domingo, 22 de novembro de 2009

Dia do zumbi

E aí, como foram de feriadão? Feriado é bom, né? Principalmente quando cai numa sexta-feira e o fim de semana é antecipado: menos um dia de trabalho, de estudos, de acordar cedo, de aturar ônibus cheio, um calor desgraçado, gente suada. Mais um dia para o nosso descanso, muito merecido.

Mas não entendo até hoje a criação desse feriado da Consciência Negra, dia 20 de novembro. Não digo que seja desnecessário - nem necessário, porque o que o Brasil mais tem é feriado -, e não digo isso por causa do descanso. Acho importante sim um dia em homenagem aos negros, que tanto fizeram e fazem parte da História do país, além de importantes para a construção da identidade do povo e da cultura brasileira. O que não entendo é o dia da Consciência Negra ser exatamente no dia 20 de novembro.

A data foi concebida pelo projeto de lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, por ser o aniversário de morte de Zumbi dos Palmares, o líder do Quilombo de Palmares e principal representante da luta do negro contra a escravidão que morreu no ano de 1695, em combate. Desde então é tido como um herói nacional.

Mas há algum tempo li em alguma publicação - acho que foi a revista Superinteressante - ter sido provado pelos historiadores e estudiosos do assunto que toda esta história é uma farsa. Zumbi pode ter sido sim um grande líder, mas diz-se que era carrasco, maltratava os companheiros e que a história da traição de um antigo parceiro, Antônio Soares, que culminou em uma emboscada para capturá-lo e matá-lo não passa de lenda para inflar ainda mais seu martírio. Pelo que contam ele foi casado com uma branca e teve cinco filhos. Devido à sua importância, teve o status de rei entre os negros que o cultuavam como a um deus e por causa disso ele chegou a ter escravos. Como assim?

O Quilombo dos Palmares era uma comunidade autossustentável formado por escravos fugidos das fazendas. Ocupava uma área próxima ao tamanho de Portugal (!) e era ocupado por aproximadamente 30 mil pessoas. Zumbi nasceu livre, mas foi capturado por um missionário português aos 6 anos que o batizou de Francisco. Aos 15 anos ele fugiu, e dez anos mais tarde já tomava as decisões do Quilombo contra determinações portuguesas e desafiava o então líder de Palmares, Ganga Zumba. Com o argumento de que não era justo que os quilombolas fossem libertados e os outros negros continuassem escravos, prometeu liderar a rebelião e resistir contra a Coroa.

No entanto, alguns autores defendem a ideia de que os escravos que se recusavam a ir para o Quilombo eram capturados e convertidos em cativos. Ou seja, eram escravos de escravos. A Luta de Palmares não seria uma revolta contra a escravidão como um todo, mas uma recusa da própria. Que consciência é essa?

***
Ah, hoje é feriado em Niterói - dia de Arariboia, um índio. Só para efeito de curiosidade: Arariboia é tido como um representante da cidade do outro lado da ponte, como muita gente sabe - ele tem até uma estátua em frente à estação das barcas -, mas, na verdade, o dito cujo nasceu aqui, na Ilha do Governador - pra dizer mais a verdade ainda, aqui do lado da minha casa (rs). Ele lutou ao lado dos portugueses contra os franceses de Villegaignon e, por causa dessa atitude heroica, Mem de Sá (o governador do nome da Ilha) lhe deu uns lotes de terra onde? Em Niterói, para onde ele se mudou com sua família. ;D