terça-feira, 29 de dezembro de 2009

No meio do caminho havia uma cerca

"É muito difícil descrever a história de O menino do pijama listrado. Normalmente, o texto de orelha traz alguma dica sobre o livro, alguma informação, mas nesse caso acreditamos que isso poderia prejudicar sua leitura, e talvez seja melhor realizá-la sem que você saiba nada sobre a trama."

(Esse é o texto da primeira orelha do livro O menino do pijama listrado (The boy in striped pyjamas, Companhia das Letras, 2007). Portanto, se você não gosta de spoilers, ou seja, se ainda quer manter-se na surpresa, não continue a leitura deste post.)


As palavras "inocência" e "guerra" já se esbarraram no cinema. Só para citar um exemplo (na verdade, não consegui lembrar de outro hehe), em A vida é bela (La vita è bella, 1998) o garotinho judeu é poupado de ver a realidade da guerra porque o pai, interpretado por Roberto Benigni, transforma o cotidiano no campo de concentração nazista em uma grande gincana. E, assim como o belíssimo filme italiano, O menino do pijama listrado trata-se de uma fábula de guerra.

O menino do pijama listrado tem título para crianças, uma capa que chama atenção de crianças e é narrado como se fosse por uma criança numa linguagem fácil para crianças. Há também no livro certos disfarces, recursos de que os adultos se utilizam para explicar coisas difíceis de serem explicadas - e principalmente de serem entendidas - a elas. Apesar de aparentemente para crianças John Boyne dá um nó na garganta de qualquer adulto a cada página, de tão perturbador.

Bruno é um menino de 9 anos que entra em choque ao saber que terá de sair de Berlim - da casa de cinco andares, da rua cheia de árvores, da vizinhança cheia de amigos - para viver em um lugar isolado - numa casa de três andares, numa rua de terra batida, numa vizinhança cujos vizinhos ficam a quilômetros de distância - porque seu pai foi transferido de setor no "emprego", e o tédio toma conta de seu dia a dia. Para dividir sua solidão: a empregada Maria sempre andando de cabeça baixa, a irmã três anos mais velha, um pneu que serve de balanço e uma paisagem nada bonita da janela - uma "fazenda" cujos trabalhadores se vestiam todos iguais delimitada por uma cerca de arame de onde ele nunca poderia chegar perto.


Mas chegou. E no meio do caminho, do outro lado da cerca, estava um outro menino - que fazia aniversário no mesmo dia que ele, era da mesma idade que ele, da mesma altura que ele, só que um pouco mais careca, magro e franzino que ele. Nem Bruno nem Schmuel, o menino do pijama listrado, têm consciência de que a cerca significa muito mais que uma simples delimitação de terras ou de que ambas as famílias estão envolvidas num conflito muito mais terrível do que a vontade deles de voltar para a cidade natal. Da inocência e da ingenuidade nasce uma bela amizade, que nem um monstro horrível como a "solução final" poderia separar.

John Boyne abusa da imaginação ao descrever cenas históricas jamais contadas e ao criar o brilhante final. Um final que dá arrepios, tanto no livro quando no filme (cena, acima), lançado em 2008, que se manteve fiel à história original. Ainda que a adaptação tenha usurpado a narração cativante de Boyne, o principal motor da história continua sendo a ingenuidade e a amizade entre os dois meninos que atravessam as fronteiras da guerra. No entanto, o diretor Mark Herman, além de ter estragado a (minha) surpresa já no trailer, deixa tudo com uma cara comercial demais, aproveitando-se do trunfo inicial de ter a visão infantil do protagonista para a guerra como uma forma de comover o público.


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A todos um feliz 2010!
Até o ano que vem! (piadinha infame rs)

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Uma questão sobre rodas

Algumas semanas atrás aquela fantástica novela das 21h - felizes são aqueles que não a veem - começou com uma discussão que me interessou. Uma questão sobre ética, egoísmo, futuro e sobre rodas.

Acho que mesmo quem não perde seu preciosíssimo tempo vendo uma novela que simplesmente não tem história e onde bons atores são desperdiçados sabe do que está rolando. A personagem da bocuda Alinne Moraes ficou tetraplégica depois de despencar de um penhasco durante uma viagem a trabalho. Beleza. A partir daí seguiu-se o tormento e o martírio desta jovem modelo, que tinha a vida toda pela frente, uma carreira bem-sucedida a seguir, quando, !, o chão desaparece sob seus pés e ela se vê imóvel - involuntariamente - na cama de um hospital. (Aliás, a descrição da revista Veja para a boca da atriz quando seu corpo está inerte foi sensacional. tentei achar uma foto que mostrasse a boca enorme dela, mas só achei essa aí acima. rs)

Então, antes da tragédia, a nossa bocuda preferida namorava e estava prestes a se casar com o arquiteto machista Jorge (Matheus Solano). bateu o pezinho pra ir à Jordânia fotografar contra a vontade do futuro noivo, eles brigaram, terminaram tudo, o ônibus despencou e deu no que deu. Chegando aqui, Jorge bancou o rapaz certinho como sempre foi - ao contrário do irmão gêmeo (na foto acima) meio louco que namora uma alcoólatra e arrasta uma asa pra cunhada agora tetraplégica -: levou flores, visitou, disse que a ama, pediu desculpas pela briga blá blá blá A sogra - a maravilhosa (mesmo, sem sarcasmo!) Lilia Cabral -, percebendo o andar da carruagem, tirou Jorge prum canto e fê-lo prometer que se casaria com a menina e ficaria ao lado dela, já que era neste momento que ela mais precisaria dele.

Aí entra em cena a mãe do dito cujo lembrando ao filho de que ele não pode prometer uma coisa dessas, pois tem uma vida inteira pela frente e não pode desperdiçá-la com uma tetraplégica que não tem chance de melhorar num futuro previsível - tudo bem, não foi assim que ela falou, mas estou resumindo a história. Ele argumenta que não pode deixar a bocuda nesse momento, que seria muito canalha se fizesse isso, mas fica com aquela pulga atrás da orelha. A mãe fica desesperada, dizendo que sempre sonhou uma vida normal para o filho, uma vida profissional cheia de sucessos, viagens e um casamento tranquilo, com netos correndo pela casa e tudo o que uma família precisa para ser feliz como num comercial de margarina.

Só que... ela é tetraplégica... Tetraplégica, e dizemos aqui com chance remota de voltar a andar. O que o rapaz deve fazer? Pensar nele mesmo, sair da vida da mulher à francesa - afinal de contas, abandone mas não precisa magoar, né? -, levar sua vida como se nada tivesse acontecido, como se não devesse nada a ninguém, viajar à vontade, casar e ter filhos com outra? Ou manda todas as mulheres que dão mole pra ele catar coquinho, finca o pé dizendo que amor vence tudo, ignora todo o futuro de conforto para ficar de enfermeiro ao lado da mulher amada, além de sofrer todas as restrições que um deficiente sofre hoje em dia?

Por um lado é egoísmo abandonar a menina. Por outro, é desesperador ter que dizer não à própria vida - uma vida que ele sempre sonhou, que sempre quis pra ele - para ajudar a amada a dizer sim à vida dela. Onde se encaixam a ética e o amor quando se tem tanta coisa em jogo?

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Um beijo delicado


Dezembro é o mês internacional da aids. Vocês já devem ter visto em pontos de ônibus, outdoors e propagandas na TV uma nova campanha do Ministério da Saúde em homenagem ao Dia Mundial de Combate à Aids em que um casal sorodiscordante - ou seja, quando um tem o vírus e o outro não - se beija apaixonadamente. (Aliás, que beijo é aquele, de tirar o fôlego, meu Deus.)

Um amigo me perguntou o que achava dessa campanha. Ela enfatiza a luta contra o preconceito em relação aos soropositivos. O menino tem o vírus HIV e a menina não. Quando terminam de se beijar, o menino continua com o vírus e a menina continua sem. É, de fato, criativa, prazerosa, bonita de se ver, direcionada aos jovens, respondi. Mas respondi também que talvez essa propaganda possa ser mal compreendida, principalmente pelos adeptos do sexo sem proteção e pelas pessoas sem informação.

Afinal, o que nós, pessoas instruídas, podemos concluir do beijo? Que uma pessoa com vírus pode beijar - beijar, beijar, beijar! - à vontade, sem preocupação, pois já foi provado não ser possível o contágio através da saliva. (Quer dizer, mais ou menos: se o soropositivo e sua namorada tiverem um corte grande na boca, o vírus pode passar por ali.)

O slogan da campanha é "Viver com aids é possível. Com preconceito não", e ela foi distribuída em várias partes do país (como mostra a foto abaixo) e do mundo. Na França, um beijo gay foi repudiado e censurado. É luta contra o preconceito ou não é?


No entanto, acho que a campanha - pelo menos no Brasil - está incompleta. Não é todo mundo que tem acesso à informação, que tem educação o suficiente para discernir sobre o que pode e o que não pode ser feito numa relação sorodiscordante. A propaganda não relata isso. Menciona a saliva, o toque... mas não menciona que sexo deve continuar sendo praticado com preservativos. A campanha só diz para o espectador manter-se informado, entrar no site do Ministério da Saúde e tal, mas se livra da responsabilidade dos atos que essa imagem pode causar. Uma pessoa mal informada pode entender: "Ah, se eu posso beijar, sentar ao lado, eu posso transar também" e libera geral. Acho mais importante dizer como se pega o vírus do que enfatizar como não se pega. Mas aí furaria o tema da campanha. O que conta mais?

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Para mais informações, entre no site: www.todoscontraopreconceito.com.br
Para assistir à propaganda da TV, acesse: http://www.youtube.com/watch?v=C6rT10z84_c&feature=related