quarta-feira, 29 de julho de 2009

A arte de fazer partir

Filmes sobre a morte no cinema americano passam despercebidos de sua mensagem moral por carregar junto uma carga de drama muito comum na cultura ocidental. Já para os orientais a morte é um tema bastante delicado. Pelo menos foi o que pensei quando li a sinopse de A Partida e fiquei em dúvida entre assistir a esse filme ou a Os falsários em pleno Dia dos Namorados. "Poxa", pensei, "assistir a um filme só de velórios num dia comemorativo não dá." Optei pelo filme alemão, mas só agora percebi o meu erro por ter tido aquele pensamento tão estereotipado.

A Partida (Okuribito, no original em japonês, e Departures, em inglês) não é nem de longe um filme triste - ok, talvez um pouquinho, pois eu chorei em duas passagens meio "lições de vida". É um filme sublime pela sensibilidade do roteiro em tratar de um assunto muito pouco confortável para os japoneses: a cerimônia de noukan, o ritual de purificação dos mortos que prepara-os para realizar a passagem - a partida - para o outro lado.

A morte não é um assunto fácil de lidar por nenhum povo no mundo, independente da religião ou da cultura. Nas sociedades orientais, no entanto, há dois detalhes que tornam o assunto um pouco mais complicado: a superstição e o preconceito. No Japão, existe até hoje uma superstição com o número 4 que todos devem conhecem de tanto ouvirem falar. A leitura do número 4 em japonês é "shi", que também significa morte - "morrer", por exemplo, em japonês, é "shiru". Por isso, o número tornou-se amaldiçoado naquele país: uma casa cujo número é 4 é malvista pelos vizinhos; alguns hospitais não possuem quartos com a numeração; e algumas empresas simplesmente não operam no 4º andar. O 7 e o 9, combinados com o 4, podem soar como previsões de morte para um doente e por aí vai.

É claro que estes costumes perduram atualmente apenas no interior do país, onde os mais velhos perpetuam e fortalecem a cultura milenar contando histórias e experiências vividas (ou não) às gerações que vão surgindo. Imaginem então uma pessoa que lida diariamente com os mortos, pior, que toca neles todos os dias, ainda que seja num ritual de purificação de profundo respeito (no ponto de vista ocidental) de facilitar a passagem das almas ao mundo espiritual com cuidado e dignidade.

Se, por um lado, a função de um okuribito (junção de "okuri" (enviar) e "hito" (pessoa), ou seja, pessoa que envia) pede coragem àqueles que a exercem e oferece paz àqueles que perderam o ente querido, por outro, é vista como degradante pela preconceituosa sociedade local. E é nesse percalço que vive o protagonista Daigo Kobayashi (Masahiro Motoki), um violoncelista cuja orquestra se dissolve e se vê perdido, sem emprego, de uma hora para outra. Surge-lhe a ideia de pagar as dívidas e voltar para a cidade natal, Yamagata, onde algumas das características da cultura japonesa superaram a chegada da tecnologia e da modernidade - como a casa de banhos mantida por uma senhora que resiste à compra do terreno para a construção de um prédio de condomínios.

Kobayashi, acompanhado pela esposa, Mika (Ryoko Hirosue), volta a uma Yamagata reconstruída (ou destruída) pelas lembranças tortuosas de sua infância dolorosamente marcada pelo abandono de seu pai, que fugiu com outra mulher, quando tinha apenas seis anos. Foi do pai que Kobayashi recebeu o incentivo para tocar o violoncelo, instrumento responsável, aliás, pela maravilhosa trilha sonora que percorre todo o filme - e que contribui para o espectador demonstrar toda a sua emoção, o que me fez lembrar a belíssima música de Ennio Morricone na cena clássica de Cinema Paradiso (me afoguei de chorar nesse filme).

Mas quem acha que vai dormir de tanto acompanhar cerimônias de noukan (que, diga-se de passagem, são meio monótonas, como a maioria que existe na cultura japonesa - nem eu tenho paciência) engana-se. Na primeira hora e meia de filme, acompanhamos com muito humor e sutileza a mudança na vida de Kobayashi e sua adaptação na empresa que faz a preparação dos cadáveres. As caras e bocas de Masahiro Motoki me lembraram bastante as expressões bem exageradas dos mangás/animes e do cinema japonês em geral. Foi uma saída bastante viável encontrada pelo roteirista Kundo Koyama e pelo diretor Yojiro Takita para não transformar o filme numa monótona aula de "como-realizar-um-funeral-no-Japão".

É nessa mistura de humor, delicadeza e preconceito que residem a beleza e a poesia do filme: mostrar que não é com tristeza que se conta a morte mas como a arte de fazer partir e o orgulho de exercer esta atividade podem transcendê-la.

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