sábado, 25 de abril de 2009

O Islã passado a limpo

Os atentados às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001 suscitaram em autores de várias partes do mundo a inspiração para escrever sobre aqueles que seriam os "inimigos" do Ocidente. A jornalista norueguesa Asne Seierstad foi uma das primeiras, ao relatar em O livreiro de Cabul o dia a dia de uma família muçulmana, seus hábitos, costumes e cultura. Publicou, na sequência, 101 dias em Bagdá, no qual relaciona os momentos que antecederam e sucederam a invasão do Iraque pelas tropas norte-americanas. De carona, vieram Mulheres de Cabul, O salão de beleza de Cabul, Cabul no inverno, De costas para o mundo e Eu sou o livreiro de Cabul, que desmente supostas acusações de Seierstad, entre outros. Os best-sellers O caçador de pipas e A cidade do sol, ambos do iraniano radicado nos EUA Khaled Housseini, também entram na lista.

Muitos livros que debatem a religião islâmica partem da visão ocidental, etnocêntrica, considerando que todos os que vivem no Oriente Médio e crêem na religião profetizada por Maomé são os inimigos dos "países do Bem", ou seja, fazem parte do Eixo do Mal - expressão cunhada pelo ex-presidente George W. Bush para referir-se a todos os seus inimigos. É nesse aspecto que o jornalista e sociólogo Ali Kamel - diretor-executivo do Jornal Nacional, da TV Globo, e colunista do jornal O Globo - inova.

Em Sobre o Islã - A afinidade entre muçulmanos, judeus e cristãos e as origens do terrorismo (Nova Fronteira, 296 págs., 2007), Kamel faz um apanhado espetacular acerca das três religiões monoteístas - o Cristianismo, o Judaísmo e o Islamismo - para compará-las sem, no entanto, tomar partido de nenhuma delas. Com uma linguagem coloquial e bastante acessível - provavelmente para atingir os mais céticos e leigos -, Kamel, que publicou o também polêmico Não somos racistas em 2006, consegue com êxito instigar a curiosidade e a reflexão dos leitores acerca das questões tratadas.

Kamel, na verdade, percorre o caminho contrário da maioria dos autores: em vez de acusar e ocidentalizar o olhar, o jornalista abre mão do estudo antropológico, buscando apenas expor as afinidades das três religiões, e deixa que o próprio leitor interprete à sua maneira. Em algumas passagens do texto, Kamel chega até mesmo a desmentir trechos supostamente manipulados de outros autores, explicando a sua própria opinião e interpretação - mas sempre esclarecendo que esta ou aquela é a sua - sobre os versículos do Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos.

Sobre o Islã divide-se em cinco partes didáticas. Na primeira, ele revê passagens da Bíblia, o livro dos cristãos; da Torá, dos judeus; e do Alcorão, dos muçulmanos, destacando citações de Adão a Maomé, considerado este o último profeta e fundador da religião islâmica. Na segunda parte, Kamel inicia a trajetória que os árabes percorreram até os dias de hoje, a partir da morte de Maomé e da divisão dos muçulmanos em sunitas e xiitas, duas etnias muito cultuadas pela mídia. Em seguida, expõe de modo quase defensivo as razões para se acreditar que o Islã não possui como fundamento a violência - salvo em revelações diretamente relacionadas a alguns momentos históricos, ou seja, que são invalidadas por Deus após os acontecimentos. A origem dos movimentos terroristas e de seus seguidores, como Osama Bin laden, autor intelectual dos atentados às Torres, é explanada na quarta parte do livro. Questões como o fundamentalismo, o fanatismo, o suicídio e tantos outros atos considerados por nós, ocidentais, exóticos e insanos são exaustivamente debatidos. Nessas ocasiões, Kamel coloca sua interpretação acima do assunto. O que poderia tornar-se um ato infeliz - impor sua opinião e manipular a cabeça dos leitores - o jornalista tem a acuidade de informar ao público que o Alcorão é passível de diversas explicações.

É de certa forma correto apontar que a mídia e as sociedade ocidentalizadas transformaram a figura de Osama Bin laden em um ícone do extremismo islâmico e é isso que Kamel tenta explicar em seu livro. Por outro lado, os ataques terroristas, guerras por território e ameaças à paz da Humanidade reduziram a religião e o povo islâmico - assim como a religião e o povo judaico - a meros estereótipos. Em muitos países, cuja religião oficial é a muçulmana, as mulheres, por exemplo, vestem roupas ocidentais, optam por usar ou não o xador (o manto que lhe cobre os cabelos), divorciam-se e não seguem estritamente o Alcorão. O apedrejamento e a violência contra elas tão divulgada pela imprensa só acontece nos países em que o fundamentalismo está no poder. O jornalista tenta, assim, insistentemente, desconstruir a visão que se tem do Alcorão como um manual de práticas terroristas.

Com toda a História do Islamismo já decifrada e repensada, o autor não teria outro caminho senão falar de atos recentes, como a Guerra do Iraque. No entanto, em vez de dar interpretações e supostas respostas, Kamel deixa dúvidas a serem decifradas e repensadas pelos leitores. A vida pessoal do autor - filho de um sírio muçulmano com uma baiana católica e casado com uma judia - contribui para a construção de um ponto de vista mais abrangente, atitude que os outros ocidentais devem tomar para compreender: enxergar além de seus umbigos.

Enquanto a missão do povo muçulmano é difundir a religião sem o uso da força - coisa que não vem acontecendo com muito sucesso -, como está previsto no Alcorão, a missão deste jornalista de 47 anos em Sobre o Islã foi muito bem cumprida. 

2 comentários:

  1. Midori, muito boa a tua resenha, seja bem vinda a esse mundo de blogs e que tenha bastante sucesso nessa empreitada.
    Senti falta de um tópico de apresentação, algo como "Oi eu sou a Midori, uma mulher metade japonesa e metade normal ..." heheh
    Apesar dessa minha piada totalmente etnocêntrica, venho parabenizá-la justamente pelo oposto.. pela sua imparcialidade nesse polemico tema, por buscar compreender a cultura dos outros sem pré julgamentos, mostrando o que não é comumente dito e quebrando velhos estereótipos que o jornalismo ocidental insiste em alimentar.
    O livro parece ser bem interessante, me parece o livro certo para eu entender um pouco dessa cultura, um livro que não julga pelo nosso ponto de vista.

    Isso aí, boa sorte e bom blog.
    Beijos, Daniel

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  2. Quase 2 semanas para postar um comentário, desculpa!! Mas só agora terminei de ler!

    Desde 2007 quero ler “O vulto das torres”. Pretendia comprá-lo num sebo e terminar nas férias do meio de ano. Mas ao ler sua resenha, fiquei com vontade de adiar essa leitura.
    O q devo fazer..rsrs A primeira vista pensei que seria válido ler o livro sobre o qual você fez a resenha antes, mas acho que não teria problema em ler o outro antes.

    Voltando, sua resenha está muito bem redigida e você escolheu um bom assunto para começar o blog. Citar uma fonte para tentar compreender um assunto tão falado nos últimos anos e que, infelizmente, só é exibido a partir de um ponto de vista, já citado, foi muito interessante. Esses dois fatores despertaram meu interesse pelo livro.

    Parabéns! Começou com o pé direito!!!

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